Geral
No compasso do corixo -João Linhares*
| DO AUTOR
Onde moro,
a pressa não existe.
Aliás, ela só é vista nas corredeiras,
nas grandes quedas das cachoeiras.
E outrossim na piracema,
quando os peixes nadam
alucinadamente contra a correnteza
em cardumes cintilantes, num feixe de união.
O grilo canta em batidas espaçadas, pausadas,
numa ressonância sem tempo,
somente rivalizando com a escuridão
espantada pela lua, pelas estrelas
e pelas luzes poderosas dos vaga-lumes,
como se fossem olhos brilhantes de anjos
que velam a vida da mata durante o breu.
Ao longe, o ruído da onça-pintada,
a espreitar o balançar fagueiro da cotia.
Antas gigantes,
impressões marcantes...
Isso, nada no mundo copia!
A sucuri mostra como também não carece de pressa;
seu tempo é outro.
Imbuída de destreza,
aguarda o momento exato para dar o bote e abraçar,
de surpresa,
devagarzinho e fortemente,
a sua presa:
capivara, paca e até jacaré,
para nunca mais soltá-los.
De vez em quando, ouvem-se causos dela apanhar,
de inopino,
um pescador disperso a meditar
ou algum bocó...
Difícil de acreditar,
mas dá aflição
e dó!
E tudo sem pressa...
O vento sopra na copa das árvores e as refresca,
amigos que são;
pássaros, de um galho a outro,
voam, brincam e se bicam.
E fico espiando, só.
Assim, a existência flui,
estala,
sem meta,
sem escala.
Homens de chapéu na cabeça se esquecem do mundo,
pois o têm unicamente para si,
à sua frente,
com ipês-roxos, amarelos, brancos,
numa explosão de cores,
como numa exposição impressionista,
num banhado intermitente de camalote,
chapéu-de-couro, vitória-régia, erva de bicho...
Tocam a boaiada,
fazem cantigas de amores;
berrante nas costas,
canivete na cinta
e crucifixo envolto no pescoço,
beijado sempre que se passa em frente
a uma igrejinha ou a um cemitério;
sentem alegria,
dão risadas,
embora seja extenuante a lida
e suas tarefas pesadas.
E, à noite, nas fazendas,
ao redor de uma fogueira,
contam-se, tartamudeando,
histórias de muito mistério:
assombrações, atos de valentia,
encantamento, magia.
E todo mundo presta atenção;
entre vários sinais da cruz,
escuta-se bem sério.
As mãos dessa gente são grossas,
os braços torneados
e a pele queimada.
Enquanto isso,
na cidade grande,
portões fechados,
rotina frenética,
todavia insossa;
todos preocupados
com crimes, terrores,
desrespeito...
E o relógio subjugando cada pessoa.
Onde moro,
trago tudo comigo - no peito,
sem pressa, “tartarugueio”...
Nascido por aqui,
os rios eu namoro;
jogo guaviras ou bocaiuvas
pra ver quantas quicadas elas darão
em cima d’água.
E vira competição.
Geralmente perco,
porque receio machucar a ribeira.
Rimos do nada...
E toco a vida -
esteja ela alegre, ferida,
oblíqua, contorcida -
num compasso
de corixo que me seduz...
Embalo numa dança
cujos protagonistas da orquestra
são as seriemas, as araras,
as maritacas, os tucanos,
sem olvidar os tuiuiús.
E nos banhados,
jaús,
dourados,
piraputangas,
pintados,
cacharas
e pacus.
Não preciso de mais nada:
basta-me o gosto suado da terra a escorrer pelos meus dedos,
minha família pertinho,
o arroz carreteiro,
o abraço fraterno,
o tereré pantaneiro,
um olhar terno
e um bocadinho de dinheiro.
Matreiro,
perduro “tartarugueando”,
sem pressa,
sem aflição,
sem medo,
sem meta,
sem escala.
Apenas “tartarugueio”,
no compasso
do corixo,
com tudo isso
morando,
entre grasnidos
e num andar de atraso,
no meu peito
cheio, completo!
*João Linhares, Integrante da Academia Maçônica de Letras de MS. Promotor de Justiça do Ministério Público de MS. Mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona (Espanha). Especialista em Controle de Constitucionalidade e Direitos Fundamentais pela PUC-RJ.